Em 21 de setembro foi promovida na Assojubs Santos a palestra “Vamos falar sobre aborto?”, um debate sobre o tema com a presença de Regina Soares Jurkewicz, Mayara Kuntz Martino e Cristiane Gonçalves que expuseram diferentes aspectos sobre o assunto, como as questões da saúde, religião, legislação no Brasil e em outros países, e a sexualidade desligada do objetivo da reprodução.
Mayara Kuntz Martino, psicóloga no serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, formada pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC), especialista em psicologia hospitalar pelo Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e em violência e saúde pela Fundação Oswaldo Cruz, iniciou a discussão explicando a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS) na qual é considerado aborto até a 22ª semana de gestação, ocorrendo de forma natural ou induzida (segura, com profissionais e locais adequados, ou insegura).
No Hospital Pérola Byington, onde é realizado o aborto permitido por lei, o procedimento, até a 12ª semana é feito cirurgicamente (duração de 4 ou 5 minutos), e entre a 13ª e 22ª semanas, por meio medicamentoso.
O Brasil possui uma das leis mais restritivas. Desde 1940, o aborto é considerado crime e só é permitido em duas situações: para salvar a vida da mulher ou em caso de estupro. A partir de 2012 passou a ser viável em casos de anencefalia. A psicóloga ressaltou que, de acordo com pesquisas, em alguns países que o aborto passou a ser criminalizado, o número de procedimentos aumentou e a taxa de mortalidade também. Já em países que o aborto é descriminalizado, os índices diminuíram.
As mulheres que mais sofrem consequências por abortos inseguros são as negras, da periferia, sem recursos. As economicamente privilegiadas vão a uma clínica particular para fazer o procedimento. Em 1989 é que foi criado o primeiro serviço de aborto legal e seguro no Brasil. Inicialmente, com muitos ataques dos próprios profissionais, religiosos e da população. Isso reflete em isolamentos desses serviços. A cada 11 minutos no país, uma mulher é estuprada. E só 10% dos casos são notificados.
Na sequência, Regina Soares Jurkewicz, uma das fundadoras da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, que é graduada em serviço social, doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pesquisadora com ênfase em sociologia da religião, seguiu evidenciando que se trata de um problema de saúde pública, fortemente marcado por um cenário de raça e classe social.
Sua explanação se deu pela intersecção entre as questões da sexualidade e religião, mais especificamente o catolicismo. Ela destacou a força do discurso religioso conservador que se projeta na sociedade como único. E é essa noção moral sexual católica que se faz presente na cultura no momento em que se tomam decisões no campo dos diretos sexuais e reprodutivos, o que remete à questão do aborto.
É preciso deixar claro que é equivocado dizer que alguém é favorável ao aborto, mas, sim, favorável à legalização. O movimento das católicas, existente em mais de 10 países da América Latina, foi sentindo que essa visão de vincular o pecado à prática do exercício sexual tolhe a liberdade e se intromete nas decisões que são tomadas nos espaços onde a lei é elaborada, como o parlamento, o Congresso e o Supremo Tribunal Federa (STF). Ou seja, são discussões que acabam sendo permeadas por um discurso religioso.
As integrantes do Católicas entendem que o Estado é laico, mas sabem que, na prática, isso não acontece. E isso as fizeram criar uma contraposição. Em 1969, a Igreja definiu que a vida humana começa a partir da concepção, o que não é aceito de uma forma total dentro da instituição, mas passa para a história como algo definido e hoje é o pensamento oficial dela, como um dogma. No caso do aborto, a condenação não é dogmática, ela é parte de uma questão disciplinar, então pode e deve ser discutida pelos fiéis.
Regina lembrou que o Direito Canônico não considera um crime ou pecado o aborto decorrente de uma violência contra meninas até os 16 anos. Há mais tolerância do que na sociedade civil. “Esses são alguns dos instrumentos que a gente tem usado para discutir junto ao movimento de mulheres. Somos um grupo católico e feminista com uma perspectiva ecumênica”. E nessa luta, atuam junto as evangélicas, espíritas e de matriz afro-brasileira.
Por fim, Cristiane Gonçalves, docente da Universidade Federal de São Paulo na Baixada Santista e que co-coordena o Laboratório Interdisciplinar de Ciências Humanas, Sociais e Saúde (LICHSS), propôs um debate em torno de três princípios fundamentais: “educação sexual para decidir, contraceptivo para não abortar e aborto legal e seguro para não morrer.”
A professora destacou o papel adultocêntrico na questão da educação sexual na vida das crianças e jovens, restringindo a abordagem do assunto seja na família ou na escola, o que desconstrói uma perspectiva de escolha. A educação que se tem hoje não colabora para que haja uma decisão e reforça a desigualdade de gênero.
De uma maneira geral, no campo dos direitos sexuais e reprodutivos o acesso ao contraceptivo pelos jovens também não é garantido e vai estar atravessado pela moralidade. Se a adolescente vai ao posto de saúde, será questionada se os pais sabem que ela está lá e, provavelmente, terá o pedido negado, desqualificando-a em seu poder de escolha que ela julgava ser responsável.
Ainda no campo dos direitos, entende que seja necessário pensar na sexualidade descolada da reprodução, pois as perspectivas religiosas reforçam a idealização da vida sexual ligada ao relacionamento afetivo e monogâmico. E o aborto ainda está relacionado à maternidade compulsória às mulheres, idealizada e romantizada. “Estamos longe de pensar numa maternidade livre e voluntária”.
As meninas que passam pela situação do aborto – ou a tentativa dele – não têm uma rede de apoio, e enfrentam, geralmente, sozinhas. Acesso ao contraceptivo e o aborto, de forma segura ou não, são processos dolorosos.
Nesse sentido, a luta pela descriminalização do aborto é bastante antiga, mas ainda se mantém muito distante da questão do aborto legal e seguro para não morrer. Não são todas as mulheres que morrem ao abortar, essa morte tem uma cor e uma classe. O aborto inseguro hoje é a 4ª causa de morte materna no Brasil. A mulher que aborta é uma mulher comum. Dados estatísticos demonstram que 1 a cada 5 mulheres até 40 anos já abortaram. A grande questão é enxergar o aborto como um problema de saúde pública.
O intuito de trazer esse tema complexo para o debate, que também está vinculado ao Direito, foi ampliar a discussão na categoria, já que se trata de uma questão de direitos sexuais e reprodutivos, que deveriam ser garantidos também por lei, refletiu Catarina Lutfi Morgado, diretora de Organização Política e Sindical da Assojubs. Ao final das explanações, o consenso é que existem duas lutas para enfrentar: a primeira é pela legalização do direito ao aborto, e a segunda é para que haja uma estrutura e meios seguros para isso.